segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Sem olhos e sem dono.

"RIO DE JANEIRO - Já me perguntaram e eu mesmo me pergunto qual seria a imagem mais completa e dramática do abandono, da desgraça, da miserabilidade. Respondo aos outros, mas nem sempre tenho coragem de responder a mim: a do cão cego e sem dono. Ou pior: a do cão sem dono e cego. Deve parecer exagero atribuir a um cão um dos atributos mais comuns à espécie humana. Mas o homem tem sempre uma alternativa, a de acabar com tudo quando nada mais suportar. Já disseram que o único problema que realmente enfrentamos é o suicídio, uma capacidade que os animais não têm, exceto, segundo já me disseram, mas não tenho certeza, o escorpião. Além de dispor de uma saída radical para a miséria e o abandono, o homem é responsável, até certo ponto, pelo seu destino. Há sempre uma esquina errada que ele dobrou pela vida afora e cujo preço pagará inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde. O cão sem dono e cego é uma coisa viva e sofredora, sem apelação, pior do que inútil e desgarrado, pior do que desesperado, pois adquire a mansa lucidez de sua tristeza, de seu abandono, e desconfia de que nada possa mudar o seu destino. À esta altura da crônica, antes que o possível leitor me faça, faço eu mesmo a pergunta: por que estou escrevendo um texto tão triste, tão despropositado e, acima de tudo, tão discutível? Afinal, eu não sou cego, ainda não cheguei ao ponto de me considerar um cão e tenho muitos donos, donos demais. De que estou reclamando? Não sou pago para escrever sobre um assunto que nem merece a condição de assunto. Mas escrito está. Ontem, esbarrei com um cão sem dono e cego, que mancava de uma das patas, os olhos vazados não me viram, mas ele deve ter sentido o meu cheiro, a minha catinga humana. Vagava sem rumo aqui na Lagoa. Não o trouxe para casa. Quem é mais miserável?"

(Carlos Heitor Cony)

4 comentários:

  1. Carlos,

    Eu gostei do texto.. Sei o que pensa...
    Quem são mais miseráveis, os cães que são considerados irracionais e por isto não tem toda a nossa consciência, ou nós que a temos e mesmo assim não fazemos nada para mudar ...

    Gostei um monte mesmo!!
    Vc é fera, sempre disse isto e continuo achando...

    Bjs

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  2. Créditos à Carlos Heitor Cony, jornalista nascido em 14 de março de 1926 na cidade do Rio de Janeiro, não à Carlos Porphyrius, blogueiro atoa de Belo Horizonte... Mas de fato, é um belíssimo texto :]

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  3. Cony é um dos meus autores preferidos, desde a adolescência, com "Uma história de amor", até o premiado e pesadíssimo "O ventre". Li esse texto no ônibus, naquele projeto de leitura, e quase paguei mico chorando Barreiro afora...

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  4. Vi no onibus este texto e confesso que me colocou diante de um espelho para refletir... Perdemos tanto de nossa essencia que em casos assim ou diferentes sempre preferimos nao fazer nada... pq nao somos mais donos de nos mesmos... somos cegos, surdos e mudos e guiados pela vaidade.

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